Era domingo. Antes das seis da matina. Jairo acordou sonolento. A cachaça de sábado ainda amargava sua boca. A cama feita de tocos e capim farfalhou ao levantar-se. Nem havia trocado de roupa. As botas furadas ainda no pé. Se colocou de pé. No momento uma única coisa o animava, o café. No fagãozinho de lenha do barraco de pau-a-pique ainda ardiam meia dúzia de brasas. Jairo socou alí uns gravetos finos e um pedaço de palha de milho e o fogo despertou. Colocou um bule velho na chapa e encheu de água. Meteu uma medida de pó, uma 'maozada' como ele dizia e deixou ferver. Esperando sentou-se na taipa e pensou devagar. Tinha algo diferente naquele dia. Sentia como se o peito ardesse. Absorto em seus pensamentos nem percebeu que a água borbulhava no bule. Despertou-se daquele mundo de fantasias quando uma gota fervente pulou em suas mãos. Pegou um pano de prato sujo e rasgado e puxou o velho bule. Pegou um graveto em brasa e colocou dentro do bule. O pó baixou. Encheu um caneco velho de ágata cheio de lascados com aquele café. Nele colocou distráido uma quantidade absurda de açúcar. Provou devagar o mel negro que podia ter gosto de tudo, menos de café. Mas serviu para tirar o amargor e alinhar a mente. Era mesmo um dia especial. Jairo se sentiu ungido. Lembrou daquele sonho estranho que o fez acordar sabe-se lá que horas da madrugada. Um anjo apareceu a ele. Logo ele. Devoto de São José. Pensou e pensou. Se o padrinho José teve a visita de anjos por que não ele?
Vestiu se chapéu de feltro e abriu a porta. Cilada, sua égua, estava olhando para ele. Ele fez um esforço mas não se lembrava de ter tirado o arreio dela. Teria cilada se desvencilhado da tralha toda sozinha? Bobagem, pensou Jairo. Apenas com aquele café no bucho, sem nada de alimento, ele pegou a sela e paramentou sua companheira. A única que restou depois que mulher e filhos haviam ido embora para Minas. Fez um carinho na égua e montou na cilada. Ela já sabia que o caminho era o de sempre. A via sacra de Jairo. De segunda a sábado Cilada fazia o caminho para casa parando em cada boteco. No domingo ela fazia a ida e vinda. Sabia que naquele dia ela nem iria até o pasto apartar o gado. Não iria ficar solta nas terras de sinhôzinho. Domingo era dia de ser amarrada em postes na porta dos bares.
Cilada sentia algo diferente em Jairo. Ele que sempre conversava com ela estava quieto. Jairo pensava em seu sonho. O anjo havia lhe dado uma missão. Ele pensava se a bebida o havia deixado louco. Ou se ele realmente entendia o ocorrido. Deus perdia tempo com bêbados como ele? Mas e daí? Nem ligo! Esse era seu jeito. Deus uns tapinhas no pescoço de Cilada e ela acelerou o passo. Jairo olhava no pedaço da orelha da égua que havia sido praticamente comido por carrapatos. É. Esse mundo é de parasitas mesmo. Se bobeamos eles nos comem. Vamos Cilada, balbuciou. Cada dia o bar ficava mais longe. Em cada porta que antes havia desenhado uma garrafa de cerveja havia um nome de igreja. Domingo de manhã algumas estavam abertas. Dentro delas uma meia dúzia de pessoas e alguém a pregar em altos brados num microfone. A caixa chegava a vira no avesso. Jairo passou olhando. Não ouvia. Aqui era o bar do tonho, lembrou ele. Ali na outra era o Bar do Araújo. Mais embaixo, uns dois quilometros, enfim um porto seguro. "Mané. Manda aí uma cabeçuda. Tenho uma missão a cumprir". O boteco veio abaixo de tanta risada. O sergipano de sotaque arrastado que estava apoiado no balcão soltou uma frase: "o xente! endoidou foi?". Jairo entornou a canjibrina de um gole só e pediu mais uma. Nada respondeu. Saiu devagar e na porta do bar convidou os colegas para seguí-lo até o Alto da Bela Vista. Ninguém se moveu. Cedo demais, disse um coitado sentado à porta.
Jairo seguiu adiante montado em sua velha e paciente companheira. Entrou por uma viela. Subiu uma ruazinha. E foi convidando as pessoas. Tinha gente de terno que ia ao culto. Tinha meninos com paramentos religiosos que iam auxiliar o pároco. Havia os donos de comércio preparando os frangos nas assadeiras. Tinha um amolador de faca e seu apito longo. Aqui e ali uma velha senhora que acenava. Lá se foi Jairo morro acima. Para cada um um convite. Lá no alto ele apiou de sua égua. Subiu na pedra. E anunciou que era um profeta. Um enviado. Fechou seus olhos e levantou um braço apontando aos céus. Então gritou em alto brado: "Não mais Igrejas! Não mais religiões!" e proferiu um complemento que sempre ouvia mas não sabia o que significava, " Oráculo do Senhor!". E completou sua profecia: "Basta que amemos. E só!". Olhou para baixo. Ninguém o havia seguido. Todos estavam no mesmo lugar. Faziam as mesmas coisas. Iam por aí. Jairo pensou: "todas as palavras necessárias foram ditas". Montou em cilada. Cilada foi-se com ele passando por todos os lugares de todos os dias. Pelo menos naqueles que restaram. E assim foi-se o domingo.
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