quinta-feira, 28 de maio de 2015

O Profeta e o Bar do Araújo.

Era domingo. Antes das seis da matina. Jairo acordou sonolento. A cachaça de sábado ainda amargava sua boca. A cama feita de tocos e capim farfalhou ao levantar-se. Nem havia trocado de roupa. As botas furadas ainda no pé. Se colocou de pé. No momento uma única coisa o animava, o café. No fagãozinho de lenha do barraco de pau-a-pique ainda ardiam meia dúzia de brasas. Jairo socou alí uns gravetos finos e um pedaço de palha de milho e o fogo despertou. Colocou um bule velho na chapa e encheu de água. Meteu uma medida de pó, uma 'maozada' como ele dizia e deixou ferver. Esperando sentou-se na taipa e pensou devagar. Tinha algo diferente naquele dia. Sentia como se o peito ardesse. Absorto em seus pensamentos nem percebeu que a água borbulhava no bule. Despertou-se daquele mundo de fantasias quando uma gota fervente pulou em suas mãos. Pegou um pano de prato sujo e rasgado e puxou o velho bule. Pegou um graveto em brasa e colocou dentro do bule. O pó baixou. Encheu um caneco velho de ágata cheio de lascados com aquele café. Nele colocou distráido uma quantidade absurda de açúcar. Provou devagar o mel negro que podia ter gosto de tudo, menos de café.  Mas serviu para tirar o amargor e alinhar a mente. Era mesmo um dia especial. Jairo se sentiu ungido. Lembrou daquele sonho estranho que o fez acordar sabe-se lá que horas da madrugada. Um anjo apareceu a ele. Logo ele. Devoto de São José. Pensou e pensou. Se o padrinho José teve a visita de anjos por que não ele?

Vestiu se chapéu de feltro e abriu a porta. Cilada, sua égua, estava olhando para ele. Ele fez um esforço mas não se lembrava de ter tirado o arreio dela. Teria cilada se desvencilhado da tralha toda sozinha? Bobagem, pensou Jairo. Apenas com aquele café no bucho, sem nada de alimento, ele pegou a sela e paramentou sua companheira. A única que restou depois que mulher e filhos haviam ido embora para Minas. Fez um carinho na égua e montou na cilada. Ela já sabia que o caminho era o de sempre. A via sacra de Jairo. De segunda a sábado Cilada fazia o caminho para casa parando em cada boteco. No domingo ela fazia a ida e vinda. Sabia que naquele dia ela nem iria até o pasto apartar o gado. Não iria ficar solta nas terras de sinhôzinho. Domingo era dia de ser amarrada em postes na porta dos bares.

Cilada sentia algo diferente em Jairo. Ele que sempre conversava com ela estava quieto. Jairo pensava em seu sonho. O anjo havia lhe dado uma missão. Ele pensava se a bebida o havia deixado louco. Ou se ele realmente entendia o ocorrido. Deus perdia tempo com bêbados como ele? Mas e daí? Nem ligo! Esse era seu jeito. Deus uns tapinhas no pescoço de Cilada e ela acelerou o passo. Jairo olhava no pedaço da orelha da égua que havia sido praticamente comido por carrapatos. É. Esse mundo é de parasitas mesmo. Se bobeamos eles nos comem. Vamos Cilada, balbuciou. Cada dia o bar ficava mais longe. Em cada porta que antes havia desenhado uma garrafa de cerveja havia um nome de igreja. Domingo de manhã algumas estavam abertas. Dentro delas uma meia dúzia de pessoas e alguém a pregar em altos brados num microfone. A caixa chegava a vira no avesso. Jairo passou olhando. Não ouvia. Aqui era o bar do tonho, lembrou ele. Ali na outra era o Bar do Araújo. Mais embaixo, uns dois quilometros, enfim um porto seguro. "Mané. Manda aí uma cabeçuda. Tenho uma missão a cumprir". O boteco veio abaixo de tanta risada. O sergipano de sotaque arrastado que estava apoiado no balcão soltou uma frase: "o xente! endoidou foi?". Jairo entornou a canjibrina de um gole só e pediu mais uma. Nada respondeu. Saiu devagar e na porta do bar convidou os colegas para seguí-lo até o Alto da Bela Vista. Ninguém se moveu. Cedo demais, disse um coitado sentado à porta.

Jairo seguiu adiante montado em sua velha e paciente companheira. Entrou por uma viela. Subiu uma ruazinha. E foi convidando as pessoas. Tinha gente de terno que ia ao culto. Tinha meninos com paramentos religiosos que iam auxiliar o pároco. Havia os donos de comércio preparando os frangos nas assadeiras. Tinha um amolador de faca e seu apito longo. Aqui e ali uma velha senhora que acenava. Lá se foi Jairo morro acima. Para cada um um convite. Lá no alto ele apiou de sua égua. Subiu na pedra. E anunciou que era um profeta. Um enviado. Fechou seus olhos e levantou um braço apontando aos céus. Então gritou em alto brado: "Não mais Igrejas! Não mais religiões!" e proferiu um complemento que sempre ouvia mas não sabia o que significava, " Oráculo do Senhor!". E completou sua profecia: "Basta que amemos. E só!". Olhou para baixo. Ninguém o havia seguido. Todos estavam no mesmo lugar. Faziam as mesmas coisas. Iam por aí. Jairo pensou: "todas as palavras necessárias foram ditas". Montou em cilada. Cilada foi-se com ele passando por todos os lugares de todos os dias. Pelo menos naqueles que restaram. E assim foi-se o domingo.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Inveja da Magia

Fiquei parado. Olhando aquele desenho feito em giz no quadro negro da sala de minha esposa. Uma fada. Silhueta longilínea, com o braço estendido e segurando uma vara de condão. Vestido esvoaçante. Pernas longas com uma sapatilha aos pés. Lindo. Até os borrões de uma tentativa de apagar o giz parecia uma mágica a criar uma nuvem em frente à fada. Haviam tantos detalhes. Laços. Fitas que enlaçavam as pernas. Cabelos. Absorto em meus pensamentos diante daquele desenho. Pensei como sou. Sou das exatas. Sou do lógico. Sou das coisas retas, das linhas, dos círculos e dos ângulos. Ainda que as curvas suaves sejam infinitas retas que se somam. Fico preso naquelas atômicas retazinhas. Como se a beleza das formas não fossem apenas círculos e ângulos geométricos. Sinto inveja. Não tenho o dom das cores. Não tenho o olhar dos mestres e pintores. Não tenho o ouvido dos músicos. Apenas sinto a beleza das notas, das vozes e da harmonia. Como eles conseguem? Eu não sou harmônico. Meus dedos se atrapalham nas teclas e nas cordas. Também nos lápis e pincéis. Sequer sei batucar em rítmo. Sou um metrônomo quebrado. Invejo os pintores e suas pinturas nos quadros. Mesmo aqueles que parecem rabiscar sem sentido. E voilà, surge uma linda paisagem. Um corpo nu. Invejo os desenhistas e seus desenhos perfeitos. Invejo os músicos e compositores e suas notas no ar. Traduzir os sonhos. É magia!

 

Tantos dons nas mãos dos artistas. Dons que não me deram. Então me sacio combinando palavras. Me contento escrevendo versos que só eu leio. Afagos egoístas em minha própria alma. Fico barrando minhas angústias daquilo que não sei fazer. Rabisco meus anseios em linhas indecifráveis. Triste como o mais tristes dos poetas. Sem palco. Sem vernissage. Sem talento. Sem aplauso. Preso em mim mesmo. Sufocado por um rancor de apenas ver. Jamais fazer. De ser apenas mais um que passa em meio aos milhares iguais a mim. Quem olha? Quem vê? Quem quer? Não. Não. Isso não importa! Existo. Respiro. Escrevo. Nada mais. Não. Nada mais. Apenas.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

A Carta do Cacique Seattle - 1854


O discurso abaixo foi proferido em onze de março de 1854 pelo chefe das tribos indígenas pele vermelha Suquamish e Duwamish em uma grande reunião ao ar livre, em Seattle, estado de Washington. É conhecido como Carta do Chefe Seattle. Para mim é um ode à natureza, à vida e à todas as coisas simples e necessárias.
 
“Como você pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? A ideia é estranha para nós. Se nós não somos donos da frescura do ar e do brilho da água, como você pode comprá-los? Cada parte da Terra é sagrada para mim e o meu povo.
Cada pinha brilhante, cada praia de areia, cada névoa nas florestas escuras, cada inseto transparente, zumbindo, é sagrado na memória e na experiência de meu povo. A energia que flui através das árvores traz consigo a memória e a experiência do meu povo. A energia que flui pelas árvores traz consigo as memórias do homem vermelho.
Os mortos do homem branco se esquecem da sua pátria quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos nunca se esquecem desta bela Terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da Terra e ela é parte de nós.

As flores perfumadas são nossas irmãs, os cervos, o cavalo, a grande águia, estes são nossos irmãos. Os picos rochosos, as seivas nas campinas, o calor do corpo do pônei, e o homem, todos pertencem à mesma família.
Assim, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que quer comprar nossa terra, ele pede muito de nós. O Grande Chefe manda dizer que reservará para nós um lugar onde poderemos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Então vamos considerar sua oferta de comprar a terra. Mas não vai ser fácil. Pois esta terra é sagrada para nós.
Chefe Sealth - Foto da Wikipedia


A água brilhante que se move nos riachos e rios não é simplesmente água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se vendermos a terra para vocês, vocês devem se lembrar de que ela é o sangue sagrado de nossos ancestrais. Se nós vendermos a terra para vocês, vocês devem se lembrar de que ela é sagrada, e vocês devem ensinar a seus filhos que ela é sagrada e que cada reflexo do além na água clara dos lagos fala de coisas da vida de meu povo. O murmúrio da água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos e saciam nossa sede. Os rios levam nossas canoas e seus peixes alimentam nossas crianças.

Se vendermos nossa terra para vocês, vocês devem lembrar-se de ensinar a seus filhos que os rios são irmãos nossos, e de vocês, e consequentemente vocês devem ter para com os rios o mesmo carinho que têm para com seus irmãos.
Nós sabemos que o homem branco não entende nossas maneiras.
Para ele um pedaço de terra é igual ao outro, pois ele é um estranho que chega à noite e tira da terra tudo o que precisa. A Terra não é seu irmão, mas seu inimigo e quando ele a vence, segue em frente. Ele deixa para trás os túmulos de seus pais, e não se importa. Ele seqüestra a Terra de seus filhos, e não se importa.
O túmulo de seu pai, e o direito de primogenitura de seus filhos são esquecidos. Ele ameaça sua mãe, a Terra, e seu irmão, do mesmo modo, como coisas que comprou, roubou, vendeu, como carneiros ou contas brilhantes. Seu apetite devorará a Terra e deixará atrás de si apenas um deserto. Não sei!
Nossas maneiras são diferentes das suas. A visão de suas cidades aflige os olhos do homem vermelho. Mas talvez seja porque o homem vermelho é selvagem e não entende. 
 
Não existe lugar tranqüilo nas cidades do homem branco. Não há onde se possa escutar o abrir das folhas na primavera, ou o ruído das asas de um inseto.

Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não entendo. A confusão parece servir apenas para insultar os ouvidos. E o que é a vida se um homem não puder ouvir o choro solitário de um curiango ou as conversas dos sapos, à noite, em volta de uma lagoa.
Sou um homem vermelho e não entendo.  O índio prefere o som macio do vento lançando-se sobre a face do lago, e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva de meio-dia, ou perfumado pelos pinheiros.
O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo hálito – a fera, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo hálito.
O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo há dias esperando a morte, ele é insensível (ao seu próprio) mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra, vocês devem se lembrar de que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seus espíritos com toda a vida que ele sustenta. 
Mas se vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la separada e sagrada, como um lugar onde mesmo o homem branco pode ir para sentir o vento que é adoçado pelas flores da campina.
Assim, vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra.Se resolvermos aceitar, eu imporei uma condição – o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos. Eu Sou um selvagem e não entendo de outra forma.
Vi mil búfalos mortos e apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os matou da janela de um trem que passava. Sou um selvagem e não entendo como o cavalo de ferro que fuma pode se tornar mais importante que o búfalo, que nós só matamos para ficarmos vivos.
O que é o homem sem os animais?
Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão do espírito. Pois tudo o que acontece aos animais, logo acontece ao homem. Todas as coisas estão ligadas.

Vocês devem ensinar a seus filhos que o chão sob seus pés é as cinzas de nossos avós. Para que eles respeitem a terra, digam a seus filhos que a Terra é rica com as vidas de nossos parentes. Ensinem aos seus filhos o que ensinamos aos nossos, que a Terra é nossa Grande Mãe.
Tudo o que acontece à Terra, acontece aos filhos da Terra. Se os homens cospem no chão, eles cospem em si mesmos.

Isto nós sabemos – a Terra não pertence ao homem – o homem pertence à Terra. Isto nós sabemos. Todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Todas as coisas estão ligadas.
Tudo o que acontece à Terra – acontece aos filhos da Terra. O homem não teceu a teia da vida – ele é meramente um fio dela. O que quer que ele faça à teia, ele faz a si mesmo.
Mesmo o homem branco, cujo Deus anda e fala com ele como de amigo para amigo, não pode ficar isento do destino comum. Podemos ser irmãos, afinal de contas. Veremos.

De uma coisa nós sabemos e que o homem branco pode um dia descobrir – o nosso Deus (das tribos peles vermelha da América do Norte) é o mesmo Deus.
Vocês podem pensar agora que vocês O possuem como desejam possuir nossa terra, mas vocês não podem fazê-lo.
Ele é o Deus do homem, e Sua compaixão é igual tanto para com o homem vermelho quanto para com o branco (ou para o negro, o amarelo, não importa a cor da “vestimenta de pele”).
A Terra é preciosa para Ele, e danificar a Terra é acumular desprezo por seu criador. Os brancos também passarão, talvez antes de todas as outras tribos.
Mas em seu desaparecimento vocês brilharão com intensidade, queimados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e para algum propósito especial lhes deu domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho.

Esse destino é um mistério para nós, pois não entendemos quando os búfalos são mortos (em excesso), os cavalos selvagens são domados, os recantos secretos das florestas carregados pelo cheiro de muitos homens, e a vista das montanhas maduras manchadas por fios que falam.

Onde está o bosque? Acabou.
Onde está a águia? Acabou.
É o  fim dos seres (realmente) vivos e o começo da sobrevivência.”

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Unus pro omnibus, omnes pro uno?


Percebo muitas vezes que vivo em uma pequena caixa repleta de escorpiões. Qualquer movimento mal dado basta para ser picado. Também é como se vivesse um constante jogo de xadrez. Olhando um pequeno movimento de alguém que não deveria ser meu adversário, mas se faz como, é preciso o maior cuidado em prever todos os possíveis movimentos futuros. Estão sempre armando uma situação de xeque-mate. Estressante, agonizante e triste. Assim é o mundo da pesquisa e dos pesquisadores. Pelo menos onde vivo. O psicanalista Flávio Gikovate diz que "exige humildade intelectual: não se ver como mais sábio, ponderado e inteligente". Mas não é isso que vejo. Quase todos são "o máximo" nesse meio.  Poucos tem humildade intelectual. Um colega me disse que existem três maneiras de se resolver um impasse, um conflito: pela lógica, pelo ego e pelo dolo. Pois o que aqui vejo, na ordem, é usar o ego e depois o dolo. Que se dane a lógica. Ainda que se veja que o trabalho de outrem é melhor o ego cega e usa-se o dolo para denegrir, mentir, acusar e atropelar o outro. 

No livro "Política. Quem Manda, Por que Manda, Como Manda" de João Ubaldo Ribeiro, vemos que a política é parte integrante de nossa vida. Negociamos o tempo todo. Em família, no clube, na sociedade, em nosso trabalho. Em suma somos, queiramos ou não, políticos em todo o lugar. Mas existe um espaço imensurável  entre política e politicagem. Politicagem é a política que tem por objetivo atender aos interesses pessoais ou trocar favores particulares em benefício próprio(1). A política é arte de centralizar, comandar e gerenciar as massas, fazendo uso de vários recursos para fazer e criar o seu domínio(1). Mas a política é para o benefício e não para prejuízo. Deve incluir. Tanto é que seus antônimos passam por intolerância, unilateralismo, etc. Ou seja, a politicagem. Para mim é claro que nesse meu sujo e fétido castelo reina a politicagem. Nenhum interesse público é levado em consideração, exceto se for absolutamente igual ao interesse pessoal. As traições são tão comuns que dariam inveja em Hamlet. Pois é, "tem algo de podre no reino da Dinamarca". E assim como em Hamlet existe aqui também sempre um fantasma querendo vingar alguma coisa. E os favores são trocados entre os ratos de esgoto que propagam uma espécie de peste negra que, se não tomarmos cuidado, nos pega, nos enche de bulbos e nos faz tão lixo quanto os demais.

Pois a famosa frase de "Os três Mosqueteiros" de A. Dumas e que aparece no domo central do Palácio Federal da Suíça, "Unus pro omnibus, omnes pro uno", se tivesse que ser colocada nesse castelo em que vivo deveria ser trocada para " Omnes pro uno, omnes pro uno, Quoniam suus ' me!" (todos por um, todos por um. Desde que seja eu).


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(1) - Dicionario inFormal - http://www.dicionarioinformal.com.br

terça-feira, 5 de maio de 2015

ACASO

Tempos atrás eu escrevi  um artigo para "O Estafeta" em que falava da proximidade da morte. Um amigo leu e fez um comentário. Aparentemente, com o passar dos anos ele temia a morte que se aproximava. ler o artigo o fez tremer. Estranha essa relação humana com a morte. A maioria das religiões prega o paraíso após o fim da vida. Alguns até falam em um número de virgens que nos esperam além dos portões do cemitério - não sei sinceramente qual a serventia para uma alma nesse caso. Mesmo assim a tal morte é temida. Mas a certeza está aí: todos passaremos por ela. São Francisco de Assis a chamava de "Irmã Morte".  É isso mesmo. Ela é nossa irmã. Temida, indesejada, assustadora irmã. Mas a física, que em princípio se chamava "filosofia natural", nos mostra algumas realidades que nos fazem perder as certezas. Por exemplo, a matéria que vemos, tocamos e sentimos é 99,999999999999% espaço vazio. Mas mesmo assim a tocamos, vemos e sentimos. Obra de nossos sentidos. São verdades que criamos em nossas mentes. Nossas certezas são incertezas. Nossas verdades nem sempre são verdades. Quase nunca. O que vemos é fruto do que construímos. Então o que é a morte? A morte não é um ponto final. A morte é uma vírgula. No pior dos casos um ponto-e-vírgula. E a frase continua. Outro parágrafo. Teria o mesmo assunto? Não sei qual sua religião ou sua fé. Mas existe algo depois e em nossa santa ignorância não fazemos a menor idéia do que é. Dá um frio na barriga. Mas está lá. Nos espera. E não é porque envelhecemos que ela está presente. Nada disso. O que explica o bebê que morreu naquele acidente e o velho de 101 anos encontrado soterrado cinco dias após o terremoto do Nepal? O acaso. No livro "O Andar do Bêbado" Leonard Mlodinow nos fala muito bem disso. Fazemos escolhas aleatórias que podem facilitar eventos futuros. Mas somos frutos de bilhões de escolhas aleatórias que não fizemos. E o acaso nos leva a estar alí, de sofrer de uma doença, de passar raspando ou de não conseguir chegar lá. Bom é quando o acaso nos é favorável. Como diz a letra da canção Epitáfio dos Titãs, nós esperamos mesmo que "o acaso vai nos proteger enquanto eu andar distraído". Não adianta você me perguntar: E Deus? Onde entra nisso? Deus foi quem criou você. A aleatoriedade ganhamos quando alguém comeu do bom fruto proibido. o fruto de querer caminhar com as próprias pernas e de tomar as próprias decisões. E nesse caos de escolhas humanas devemos viver o melhor. E, novamente parafraseando a canção dos Titãs,  "devíamos ter amado mais, chorado mais, visto o sol nascer, complicado menos, trabalhado menos, visto o sol se pôr, ter aceitado a vida como ela é". Pois "a cada um cabe alegrias e a tristeza que vier". E entre as tristezas e alegrias está ela. A nossa boa, santa e cruel irmã morte.