terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Bom dia

 Bom dia!



Acordo cedo. O sol ainda amarela o horizonte. Deitado no quarto de janela aberta só percebo o muro que separa minha casa e a da vizinha. De cor amarelada pela luz e pedindo pintura. A trinca faz um desenho estranho que parece um pequeno rio visto lá do alto. O serpenteio me lembra a vida toda cheia de percalços. Levantar é um sacrifício. Então serve pensar. O que espera por mim nesse dia? Os planos que fiz decerto não acontecerão de novo. De noite ao deitar o “por fazer” ainda estará ali numa das curvas daquela trinca. Imutável. Que desafios se apresentam? Todos os dias os mesmos e os novos. Se acumulam feito sacos de carvão nas carroçarias dos caminhões. Cada dia mais alto. Até que tombam um dia qualquer. Quem encontrarei? Os mesmos rostos de sempre? E darei o mesmo e seco bom dia. Sorriso amarelo no rosto. Bom dia! Bom dia! O pedreiro que enrola um cigarro para pitar na esquina. Bom dia! Os catadores de lixo que fuçam nos sacos a procura de ouro. Bom dia! A trabalhadora apressada que todo dia quase perde a condução. Bom dia! Os idosos que esperam o carro da saúde. Bom dia com muita esperança! Os mais idosos que apenas esperam o dia de partir. Bom dia! Bom dia com voz rouca e sem forças. Uma pequena oração ainda deitado. Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver ódio que eu leve o amor.

Os pensamentos distraídos pelo canto do bem-te-vi vão soletrando as palavras. Onde houver dúvidas que eu leve a fé. Antes do “fazei que eu procure mais” me ponho de pé. Descalço sinto o chão frio do banheiro. É dando que se recebe. Apesar da reprovação daquela imagem no espelho deixarei a barba para amanhã. Reparando aqueles tantos fios brancos que não tinha poucos anos atrás e ainda pensando: e é morrendo que se vive para a vida eterna. A vida eterna é fácil. Difícil é chegar nela dizem os teólogos. Para isso preciso tomar meu café com leite e comer aquele pão amanhecido que torro na chapa com manteiga. As palavras da pequena oração vão se perdendo e a filosofia da vida toma conta do meu dia. Roupa trocada, dentes escovados, perfume, crachá, telefone, canetas. O mesmo ritual diário. E então saio às ruas. Onde há ódio, onde há ofensa, onde há discórdia, onde há dúvida, onde há erro, onde há desespero,  onde há tristeza e onde há trevas. E assim na densa nuvem da incerteza do dia sumo por entre a neblina da vida. Ainda que saiba que ao final do dia a mesma trinca esteja em meu muro, quem sabe um pouco mais crescida, me perco nas vielas do consolo, da compreensão, do perdão e da morte.  Corto algumas cabeças do “por fazer” que se comporta como a Hidra de Lerna. Não me resta alternativa ao seu bafo mortal. Corto as que posso. Os encontros se repetem. Boa tarde. O Sol fechou seu arco.  No ocaso resta-me amar. Profundamente. De volta aos muros. Ao quarto. À trinca. Boa noite e até amanhã.

Um comentário:

  1. Belo texto Professor!!!
    Teve dias que me senti assim. Ainda sinto algumas vezes essa constante antes de acordar. Quando isso acontece, me reluto pra levantar... os dias parecem durar mais.
    Meio depressivo oque disse , mas é como disse o poeta Vinicius de Moraes:
    ".. tristeza não tem fim...felicidade sim. "

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