terça-feira, 12 de agosto de 2014

Meia Idade

O trem

Eu já tive 10, 20, 30, 40, 50 e continuo seguindo. Fui criança, adolescente, jovem, adulto, experiente e de meia idade. Se não inventarem nada mágico para prolongar a vida, certamente eu já passei da metade. Resta menos para viver do que já vivi. Posso morrer a qualquer momento de choque, ebola, comida estragada na caçarola, acidente, incidente, pereba, carrapato, chato, aids, tiro, trupicão, tédio, atacado por animal peçonhento, atropelado, infarto, engasgo, qualquer coisa supurada, apendicite, rinite e até de chatice. Mas pode ter certeza que irei nessa ferrovia da vida para onde não sei onde é.

A morte conspira contra mim desde o dia que nasci. Me safei dela sabendo e sem saber tantas vezes. Quando criança andava pelo mato, acampava no meio dos bichos, subia nos morros e montanhas, mexia com fogo, pólvora, álcool. Fazia flechas e espetos, espadas de bambu, mas nada. Me cortei feio muitas vezes com facões, facas, pedradas de estilingue. Finquei o pé em cacos de vidro, fundos de vidro de Toddy (as embalagens eram de vidro, acredite!). E nada. Tive umas infecções brabas, doenças estranhas, fiquei de cama, resfriado, gripado, enjoado, emperebado e nada. As nuvens negras me cercaram, enfrentei tempestades de raios, caí da bicicleta muitas vezes, me estrepei em um buraco, caí da pereira, me enrosquei em um tronco embaixo d'água. Passei incólume exceto por uns roxinhos aqui, arranhões e pequenos cortes. Nunca quebrei nada grave - um dedo uma vez e um pequeno osso do pé. Já era adulto. Venci a morte que me cercava.

Mas ela está ali. Aqui. Ao meu lado. Nas mãos de um terrorista maluco. De um doidivanas armado. Daquele viciado em craque fissurado. No motorista imprudente, naquele doutor inexperiente ou até mesmo anquele frasco de remédio que tomei no escuro. Será que tomei o certo? Até hoje, sempre, a vida venceu. Mas devo estar preparado porque uma hora a vida perde. Click. Acabou. Então devo começar uma nova jornada. É tão estranho se ter uma única certeza: de que a cada dia de vida quem ganha espaço é a morte. Natural. Humana. Estranha. Ela vem vindo. A barriga gela. O coração dispara. A adrenalina sobe. É ela. Um trem que não via porque estava depois das montanhas (mas sabia pelo apito) que se aproxima mais e mais. Agora já vejo sua fumaça. Um dia essa locomotiva irá parar em frente à minha estação e terei que ir. Espero poder sentar na janela e olhar aquilo que fiz ir se distanciando. Espero ver que aquilo que fiz foi bonito e me dá orgulho de ir em paz. Então será a hora do adeus. Piuíííííí.

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